Artigo - Órfãos do feminicídio: um problema que não podemos ignorar
Vereadora Ireuda Silva*

Foto: Reginaldo Ipê
01/09/2021 - 13:32
Todas as pessoas que vivenciaram tragédias ou passaram por algum grande baque na vida sabem o quanto é difícil seguir em frente. No caso específico dos órfãos do feminicídio — crianças e adolescentes cujas mães foram assassinadas por motivações de gênero, na maioria das vezes pelos próprios companheiros —, a dificuldade de tocar a vida é ainda maior. Nada será como antes, pois é um trauma praticamente impossível de ser superado, necessitando de acompanhamento psicológico e apoio material. E o poder público não pode ignorar essa realidade.
De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2020 houve um aumento de 7% na taxa de feminicídios, sendo que 66% das mulheres assassinadas eram negras. Além disso, a cada minuto de 2020, alguém ligou para um centro de denúncias para relatar um caso de violência doméstica contra mulheres. O Disque 190, por exemplo, recebeu 694.131 ligações sobre violência doméstica, um aumento de 16,3% em relação a 2019. Além disso, 230.160 mulheres denunciaram um caso de violência doméstica em 26 estados. São números assustadores, principalmente por sabermos que, por trás deles, existe um cenário ainda pior, mas camuflado. Grande parte das vítimas e testemunhas de violência não denunciam. E praticamente todos os feminicídios são resultado de um contexto de violência doméstica.
Os órfãos do feminicídio são vítimas em várias perspectivas, a começar pelo que certamente viveram no lar de onde vieram. Homens deflagradores de violência doméstica também não costumam poupar os filhos ou enteados, como foi o caso do empresário morto pelo filho de 15 anos em Valinhos (SP). O adolescente e a mãe eram agredidos e ameaçados constantemente. Felizmente, a mãe continua viva.
Porém, muitas são as mulheres assassinadas por seus companheiros agressores e que deixam filhos menores de idade. Essas crianças e adolescentes não podem ficar desamparadas. São pessoas que precisarão de apoio material para seguirem em frente com suas vidas. Além disso, o acompanhamento psicológico é de suma importância, diante da violência que presenciaram e, provavelmente, também sofreram. É dever do poder público cuidar dessas crianças.
Em entrevista ao site Agência Eco Nordeste, Regina Célia Barbosa, cofundadora e vice-presidente do Instituto Maria da Penha, questionou a ação do Estado nos casos de feminicídio em contexto de violência doméstica: “O que o Estado tem feito para a garantia da qualidade de vida e da promoção da cidadania daquele órfão? Tudo isso tem que ter como ponto de partida o fato de que o Estado sabia da situação daquela criança, adolescente ou jovem porque aquela mulher denunciou, já a que não denunciou nós não temos como localizar oficialmente”.
Regina Célia, que é pesquisadora, aponta ainda que “essas crianças vivem no mesmo ambiente, na mesma esfera de violência que a mãe e inclusive a nossa pergunta é se ela já vivia essa violência desde o ventre, porque é importante também que a gente saiba se essa mãe sofria violência quando grávida. Essa fase, desde a vida uterina, nós estamos chamando de orfandade anunciada, que precisa ser identificada o mais rápido possível, quais [crianças] já estão na condição de órfão, verificar se aquela condição de órfão foi em decorrência da violência doméstica”.
Em Salvador, sugerimos a criação do NACAOF (Núcleo de Atendimento a Crianças e Adolescentes Órfãos do Feminicídio). O projeto dará toda a assistência psicológica e social, por meio de grupos terapêuticos e atendimentos individuais, a fim de assegurar a saúde mental das famílias vítimas de feminicídio. A ideia é fortalecer as políticas públicas de enfrentamento e amenização do impacto do feminicídio na sociedade. Tratar-se-á de uma política pública que vai desacelerar o aprofundamento dessa tragédia social na vida desses menores, que ainda precisarão de suporte material, ter um bom rendimento na escola e se qualificar para construir uma carreira profissional, a despeito do rastro de dor que os acompanha.
Diante do que foi dito, debater cada vez mais esse problema é o primeiro passo para termos chance de enfrentá-lo. Caso contrário, estaremos reforçando uma inviabilização e, consequentemente, revitimizando quem já sofreu demais. Além disso, é de suma importância que o poder público elabore políticas públicas em prol dessas crianças e adolescentes que tiveram a vida destroçada e o futuro seriamente comprometido devido ao feminicídio, que precisa ser combatido em todos os seus aspectos.
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*Presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher e vice-presidente da Comissão de Reparação